A Onça e a Diferença
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O solo etnográfico (continua)[]

Flecha

Interessantemente, Rosengren, em um texto sobre os Matsigenka (i.e. Campa), diz que os espíritos são os que ficaram como antes; os humanos, porque se teriam cansado da ‘vida perfeita’, pediram ao criador que lhes retirasse a imortalidade etc. Assim, o fundo comum da humanidade e da espiritualidade é a espiritualidade, poder-se-ia dizer. Mas ao mesmo tempo, todos os seres criados por Tasorintsi, i.e. humanos, espíritos, alguns animais e plantas, são matsigenka, ‘pessoas’. Isto não contradiz meu argumento sobre o fundo comum da humanidade e da animalidade, baseado aliás como ele está em Weiss supra. Espiritualidade é o nome do fundo comum, quando se pensa a diferença entre a humanidade que continha a animalidade e a humanidade que já não a contém.

Ver o TIMEU 39e, 41b-43e, 76d-e, 90e-92c, evocado em G. Simondon, Deux leçons sur l’animal et l’homme, pp. 38-39, como propondo a idéia “en un certain sens monstrueuse et en un certain sens géniale” de que os animais involuiram do homem, “première position de la théorie de l’évolution dans le monde occidental. Seulement, c’est une théorie de l’évolution à l’envers.”

Ver Barcelos Neto, eu grifo: “[a civilização era] dos yerupoho, ou seja, dos Animais.” E ver The Forest Of Mirrors, i.e. Davi Kopenawa.

Referir também Lucien Sebag sobre os Ayoreo (in L’Homme): notar como ele ainda formula a separação em termos de culture out of nature, contra seus pps. dados.

The notion that the ‘I’ (humans, Indians, my tribe) which serves to distinguish is the historically stable term in the distinction between the ‘I’ and the ‘other’ (animals, white people, other Indians) appears as much in interspecific differentiation as in intra-specific separations, as can be seen in the various Amerindian myths of origin of white people (e.g. DaMatta 1970, 1973; Hugh-Jones 1988; Lévi-Strauss 1991; Ewart 2000: 141-42, 274). The others used to be what we are; they are not, as amongst ourselves, what we used to be. Thus it can be perceived how very pertinent the notion of ‘cold societies’ can be: history is given full recognition, but as something that happens only to others (and to us through the agency of others @’As the hipe with whom the panará have contact change, so the very nature of being panará also changes’ Ewart 200: 274 — Ou seja, a alteração do Outro do Outro…). @Ver E. Kohn 2002: 296, 300, sobre a runidade decaída dos Huaorani, e a achuaridade dos brancos apud Karsten@

@ Citar Ewart tese: 147-151, sobre a perda da cultura pelos animais, i.e. sobre a mitologia como criação gradual da distintividade humana por carência. Citar Alexiades-Peluso-Burr sobre o tema da transformação dos humanos míticos em animais, e o processo contrário na onomástica onírica dos Ese Eja@

@ Problema a dar conta (outra antinomia?): de fato, os mitos põem os animais como se desumanizando e os humanos como iguais a si mesmos. Mas eles também põem um estado de miséria pré-cultural de que os humanos saíram graças a demiurgos ou heróis &c. Esta ambiguidade teria algo a ver com a dupla visão, progressivista / degeneracionista, de que fala Oakdale. Cf. tb. os Piro de Gow e seus ancestrais primitivos etc.@ Brown 1986: 48: a mitologia descreve a transformação do mundo dos ancestrais, a partir de um estado de pobreza e ignorância, em um estado de prosperidade graças à aquisição de conhecimento. With the help of culture heroes and animals in human form, people acquired the knowledge... (cultivares, instrumentos, canções, alucinógenos...) ¶ Mais um exemplo da oscilação entre uma mitologia civilizatória, cultura libertando da natureza, e aquela mitologia que enfatiza a permanência do humano e a animalização posterior dos animais. ¶ Considerar se essa ambiguidade (movimento degenerativo a partir do humano, movimento progressivo de desanimalização) é a mesma que se encontra no dualismo entre demiurgo e deceptor, exposto em importantes passagens de: HN p.343 e HL p. 73-74. E ver adiante.

¶ Barcelos Neto on Waurá, tese: As condições de vida dos primeiros humanos no passado mítico eram as piores possíveis: habitavam o interior mais profundo dos cupinzeiros e não possuíam os elementos fundamentais da vida civilizada — o fogo e a agricultura —, cuja posse era dos yerupoho, ou seja, dos Animais. O plano de Kamo era reverter essa situação, despossuindo os yerupoho do fogo e da agricultura, banindo-os da superfície da terra, e entregando o seu espólio aos humanos, sua criação.

Relacionar essa ambiguidade acima mencionada com aquela ambiguidade de Lévi-Strauss sobre a passagem do contínuo ao discreto no pensamento indígena (uma meta-ambiguidade?), como “empobrecimento” necessário ao sentido e como “degradação” que produz uma certa nostalgia no pensamento. Este problema atravessa as Mitológicas, e a meu ver é o problema do estruturalismo. Ora, tal ambiguidade é, em CLS, ela própria ambígua, por assim dizer, uma vez que o autor oscila entre momentos no qual afirma “sem ambiguidade” que o contínuo é o caos, é a regressão (a marcha regressiva), é a desordem etc., e momentos nos quais (p.ex. em diversas passagens de HN, como na importante p. 448) se exprime de modo “ambíguo” sobre o que se perde com a passagem da natureza à cultura, p.ex. a “destruição de uma harmonia primitiva”, as “pesadas contrapartidas” etc. E ver a abertura meta-ambígua do capítulo seguinte, p. 449:

“Passage du continu au discret, conjugaison de l’origine du feu et de la pluie avec celle de la vie brève qui, dans l’ordre temporel, morcelle le flux démographique et le découpe en niveaux de générations, introduisant entre ceux-ci des écarts comparables aux différences entre les espèces animales pour autant que ce qui eût pu rester indistinct doit nécessairement devenir separé: dès le debut de notre enquête, l’étude de la mythologie sud-américaine avait fait ressortir tous ces thèmes.” (HN: 449; eu grifo).


A matéria na hiléia[]

To say that humanity is the original common condition of both humans and non-humans is tantamount to saying that the soul or spirit, i.e. the subjective aspect of being, is the universal, unconditioned given (since the souls of all non-humans are human-like), while objective bodily ‘nature’ takes on an a posteriori, particular and conditioned quality. In this connection, it is also worth noticing that there is a notion which seems to be wholly absent from Amazonian ontologies: the notion of matter as universal substrate [But see Osborn 1990…] . Reflexive selfhood, not material objectivity, is the potential common ground of being.


Há um discurso importante sobre a matéria-prima do cosmos na mitologia rionegrina (ver tese Geraldo; ver o magnífico livro recente dos Desana vol. 7 col. Foirn; etc.): fumaça de tabaco e coca; quartzo branco; leite... É preciso enriquecer a discussão sobre os conceitos indígenas de materialidade.• O problema do estatuto da ‘matéria’ ou ‘substância’ no pensamento ameríndio.
Lembrar de madeira = materia = mater, e das 'Mães da caça' etc. Matéria e alimento, matéria e sangue. Ver o projeto de Mauss de pensar a proto-categoria da matéria ou substância no alimento (in Allen 1998).
Há sem dúvida um conceito de corpo, mas com pouca relação com nossa “matéria” ou com a acepção vulgar moderna de “substância”; com efeito, se corpo é pele (também na Melanésia etc.) ou envoltório, ele é o contrário de uma interioridade material. O que pensar dos conceitos de “energia” ameríndios. Supondo que eles existam, não se deve esquecer, como observei em uma nota anterior, que “energia” é o nosso nome moderno para “espírito”, ou pelo menos que “energia” está perigosamente próximo dos usos de “espírito”. Os antropólogos que traduzem aqueles conceitos nativos como “energia” não saberiam dar uma definição técnica correta do conceito físico; portanto, seu uso neste contexto não faria senão vestir com uma roupagem pseudo-fisica o que é na verdade “espírito”. Notar também que a “energia” de que falam os antropólogos é sempre uma energia vital, não uma quantidade física neutra. E lembrar dos casos em que se poderia talvez falar em uma ‘soul-matter’ (Gray) — ou seja, onde a única ‘matéria’ relativamente universal é justamente a alma, não a matéria corporal. Por outro lado, seria o sangue a substância por excelência? "Sangue é espírito": Deuteronômio (cf. a discussão em Bertrand Hell, Le sang noir: 350); Nietzsche (Blut ist Geist).
Quanto a este último comentário caberia recordar a estreita associação entre sangue (kamro) e "espírito" ou "alma" (karon) entre os Mebêngôkre (Xikrin e Kayapó). Talvez se possa dizer que, no pensamento Mebêngôkre, o sangue é o veículo da alma (cf. Giannini 1991; Gordon 2003). O sangue é o meio por excelência de transmissão do karon: é pelo sangue que ele passa de um corpo a outro, é pela falta de sangue que ele se perde ou se desprende de um corpo. CG
Alguns exemplos. O cozimento pode ser visto como um processo de secamento do sangue (parte dele "evapora" em fumaça), de modo a reduzi-lo a uma quantidade ínfima ou nula na carne a ser consumida. É isso que permite que a carne seja ingerida sem risco. Qual risco? De trazer junto o karon do animal caçado. Se a carne não é suficientemente assada e contém sangue (carne crua = mry tàm, sendo tàm -- i.e. "cru" -- a mesma palavra para "encharcado, empapado, empoçado, cheio [de sangue]") o karon é ingerido: uma vez dentro do corpo do caçador (ou de quem o come) pode começar um processo de vingança, ou contra-predação, como se fosse uma devoração desde dentro (karon comendo karon), cujo resultado final pode ser a transformação radical do sujeito em seu Outro. O cozimento (eliminação do sangue) portanto é a garantia de que não se está "comendo" o karon do animal caçado. Daí também o perigo de ficar inalando a fumaça de carne sendo assada. CG
Um homem que retorna de uma expedição de guerra, tendo matado ou ferido um inimigo, precisa passar por um processo de "secagem" (que não deixa de ser um "cozimento") para eliminar o sangue do inimigo. Ele o faz postando-se sobre uma pedra ao sol, durante horas (recordar que a técnica Mebêngôkre para cozer bem os alimentos consiste em dispô-los sobre pedras escaldantes e depois cobri-los com folhas e terra: o famoso "forno de pedra", ou ki). CG
Mas não existe apenas a questão da absorção do karon alheio pela contaminação com o sangue alheio. Uma pessoa pode perder o próprio karon caso perca muito sangue. Gente muito magra, pálida, descarnada é particularmente propícia a perder o karon, pois não há sangue suficiente para sustentá-lo. A perda do karon significa doença e morte (cf. tb. Carneiro da Cunha 1978, para uma discussão geral da escatologia Timbira). Gente velha morre assim: pouco sangue no corpo, corpo ressequido, até que o karon sai. No entanto, mesmo com a morte do indidívuo, permanece algum vinculo do karon com o pouco de sangue que lhe resta no corpo; vínculo que só se desfaz após o secamento total do sangue, levado a cabo pelo sepultamento/apodrecimento - que é, mais uma vez, como um processo de cozimento: os Xikrin dizem explicitamente que o túmulo, que tem a aparência de um montículo de terra, é equivalente ao forno de pedra - e coberto de terra - ki (ver tb. Turner 1988:203) . Enquanto do corpo sepultado não restam senão os ossos, seu karon fica rondando a sepultura, o fundo da casa, etc. Costuma-se também manter um fogo aceso ao lado da sepultura. CG
A obtenção do fogo e do processo de cozimento constitui, assim, a condição não-canibal e não metamórfica dos Mebêngôkre. Só dá para comer o Outro, se ele for previamente dessubjetivado. Comer cru (i.e. com sangue) é o ato canibal, pois se trata justamente de ingerir o karon - a parte agente ou sujeito do Outro (cf. Fasuto 2002). Obviamente que o (ex)dono do fogo, nos mitos Mebêngôkre (e Jê), só poderia ser o canibal-comedor de cru e de sangue por excelência: a onça. O dono do fogo e senhor do cozido, torna-se o grande comedor de cru (i.e. de sangue). CG
Enfim, apenas alguns apontamentos tirados da etnografia Mebêngôkre para reforçar a ligação do sangue com a alma. Nesse caso, "sangue é espírito", ou "espírito está no (vai com) sangue". CG


A espécie e a condição: sobre a humanidade dos não-humanos[]

In sum, ‘the common point of reference for all beings of nature is not humans as a species but rather humanity as a condition’ (Descola 1986: 120). This distinction between the human species and the human condition — analogous to that between ‘humankind’ and ‘humanity’ made by Ingold (1994; see below, and Wagner 1981: cf. See also Schneider 1968: 110; e isso é provavelmente muito antigo; ver Wolff, L’être p. 115-ss sobre os dois tipos de textos aristotélicos sobre o ‘animal’, os biológicos e continuístas e os políticos e descontinuístas) — should be retained. It has an evident connection with the idea of animal clothing hiding a common spiritual ‘essence’ and with the issue of the general meaning of perspectivism.

Talvez a mais antiga passagem de Lévi-Strauss sobre o problema do perspectivismo (A Gesta de Asdiwal) seja também a mais antiga passagem sobre o problema do não-ser no pensamento mítico. A questão da humanidade dos animais talvez possa ser explorada à luz do tratamento conferido por ele a esse problema (HN: 1971). A unidade originária postulada pelo pensamento mítico não deveria ser traduzida unicamente pelo termo personitude? O emprego do termo ‘humanidade’ (humanity), ou ‘condição humana’, não nos deixaria sem uma palavra para nomear-traduzir o processo mais fundamental da condição humana, que é a criação e a operacionalização das diferenciações sociocosmológicas? A humanidade dos animais poderia ser dita ‘incondicionada’, mas a humanidade dos humanos é ‘condicionada’. O processo é muito semelhante àquele contido na Gesta de Asdiwal. O salmão é como eu, mas não posso agir (comer) como o salmão, sob o risco de virar salmão; ele é igual a mim, mas eu devo me distinguir dele. O abuso de identificação formulado por Lévi-Strauss indica, por si mesmo, que a diferenciação é ação humana.TSL

  • A Gesta de Asdiwal (ASII [ed.franc.] p. 212 ): para ‘nos indigènes’, ‘le seul mode positif de l’être consiste en une négation du non-être’…;
  • Comer como os salmões (embora sejamos homens) versus comer os salmões (embora eles sejam como homens) – ASII p.211;
  • Essa questão de se é apropriado ou não usar-se os vocábulos da série "humano", "humanidade" etc. para a condição animal (oculta, originária, etc.) foi levantada por diversos interlocutores (humanos) da idéia do perspectivismo. Ingold objetou a Eduardo algumas vezes isso. Recentemente, Bia Perrone-Moisés fez o mesmo, em duas mensagens de email a ele (E.) que seria preciso pedir autorização para transcrever [ver logo a seguir]. Eduardo tem resistido a esse reparo, mas está quase cedendo em vista da pressão... mas ele ainda acha que distinguir conceitualmente entre humanidade e personitude de maneira muito marcada resolve de modo 'fácil demais' um problema (o problema) que os índios, justamente, acham interessante pôr e manter em certo suspense.
  • —>Por isso, Tânia, acho que o ponto feito no parágrafo acima (assinado TSL) podia ser desenvolvido; ele é crucial. Por que você diz que as diferenciações são tarefa humana (da espécie)? Porque a espécie não seria, 'no fundo', diferenciada de modo inato, e precisaria então fazê-lo? --Eduardo 20:16, 22 Mai 2005 (UTC)
  • —>Certo, Eduardo (e não era tarefa de espécie, não; senão? pois!). Note-se que EVC tem precisão de humanitude — termo bom para se pensar (perspectivalmente) a humanidade-condição. Saca? Já forest of mirrors pareceria deslocar a questão para a espiritude, e avançar o problema. Talvez seja dessa espiritude (da alma já mais não) que vem à luz a humanitude do animal, gêmea do devir-animal do homem. Mundo sem majoritário dá nisso, não é? (TSL)


Sobre a humanidade dos não-humanos: correspondência com Bia Perrone-Moisés[]

  • Correspondência de BPM a EVC, abril de 2005 (citação e edição autorizadas): Quando penso que o jaguar descreveria o perspectivismo não em termos de uma humanidade comum, mas de uma jaguaridade comum, sendo esta, para ele, a condição de sujeito, debato-me com a seguinte questão: se humanidade é o compartilhado e o corpo, com sua perspectiva acoplada, é o diferencial, nós, humanos, somos a forma plena, os que, no plano da fixação que é o nosso (e o não-mítico) permaneceram, ao passo que os outros foram fixados em outros corpos, ou seja, mudaram. Concordo plenamente com você quando diz que é isso mesmo que os mitos de origem dos brancos dizem em relação a brancos e índios: nós, índios, permanecemos, foram eles que mudaram (e, portanto, na história estão eles, etc.). Porém, talvez porque eu relute em aceitar a idéia de que a humanidade é a forma plena, porque me leva a pensar (como aos meus alunos) não só em antropocentrismo como em aparência x essência, só consigo conceber o perspectivismo em termos pronominais. O compartilhado não é a humanidade (nossa) mas a "sujeitidade", a posição de sujeito – capacidade de agência e uma série de categorias cognitivas e organizacionais aparentemente intrínsecas a essa posição (todo sujeito tem sua aldeia, relações de parentesco, rituais, xamãs, etc). Há muita gente no cosmo, assim, não quer dizer que são todos gente como a gente, mas todos sujeitos. E os etnônimos "nós", "a gente", remetem para uma perspectiva de sujeito, a nossa. Jaguares também devem se auto-referir como "a gente", tapires idem, etc, mas não porque sejam humanos... O plano mítico seria, então (pensando no seu "Spirits"), aquele em que todos os entes podem assumir qualquer posição de sujeito, pois que o corpo não está fixado e, com ele, uma determinada perspectiva de sujeito. No plano em que se movem humanos, ao contrário, os "modos" do sujeito estão fixados nos corpos, e apenas xamãs são capazes de assumir outras perspectivas de sujeito, como se neles se mantivesse essa potencialidade que a todos é dada no plano mítico. Os outros entes, espíritos e companhia, a mantêm porque pertencem ao plano mítico, justamente. E diante disso, só posso pensar que outros sujeitos fixados, como nós, em seus corpos, só poderiam formular a condição de sujeito nos termos de sua própria "sujeitidade", daí jaguaridade, tapiridade, etc.
  • EVC não se lembra se as considerações abaixo estão a montante ou a jusante da mensagem acima: Cara Bia, Você tem razão? Talvez mas não toda... Já me fizeram essa objeção algumas vezes sobre o problema da humanidade/subjetitude (Ingold, em especial). Mas não estou preparado para substituir 'humano' por 'sujeito' salva veritate, em parte pq acho que o que é pronominal (e acho que é pronominal) é a percepção que cada tipo de sujeito tem de si mesmo como sendo dotado de forma humana, antropomorfa. Ninguém se "vê como sujeito" (um sujeito não se vê). As onças como vc sabe não se vêm como onças, ou simplesmente como "sujeitos-onça" - os jaguares se vêem como humanos porque são sujeitos para si, e não o contrário (se vêem como sujeitos porque são humanos etc.). No meu entender, a forma (figura/shape/morphè) humana é a forma (form/eidos) geral da apercepção do sujeito, e não a marca de uma espécie particular, a nossa. Por isso mesmo, saber/determinar quem somos nós - como forma nos dois sentidos - é um problema indígena bem característico, contemplado por todo o sistema de fabricação do corpo via parentesco, tabus alimentares, ritual, adornos, etc.
  • De outro email de BPM a EVC, possivelmente em resposta à resposta acima: Continuo com um "problema em dizer que (os índios dizem) que as antas ou etc. são humanas (no sentido de se verem com um corpo humano etc.)", pelo seguinte: se a "perspectiva está no corpo" e antas vêem pátio (minhas antas são jê, repare) onde vemos lama, e os jaguares cauim onde vemos sangue, o corpo delas e deles não pode ser humano... ou pode? E porque "está no corpo", a efetivação de sujeitos humanos teria de passar pela fabricação cuidadosa do mesmo, ou um ser com a possibilidade de se tornar plenamente sujeito humano correria o risco de, quem sabe, "misturar as bolas". E "espíritos", que são a "subjetitude" sem forma/corpo fixo, podem assumir qualquer forma (ou "vestir" qualquer corpo e, nele, qualquer perspectiva), inclusive a humana; xamãs também, porque todo esse pessoal, essa "gente" não como a gente, mas tanto quanto a gente, se move num plano em que isso é possível. Se "forma humana, antropomorfa" não é "corpo humano", continuo só conseguindo entender "humano" como o nome do sujeito para os sujeitos humanos...--Eduardo 18:11, 1 Jun 2005 (UTC)
  • Intromissão de TSL. Creio que a proposição de EVC, a perspectiva está no corpo, seja de fato algo complexa, e compreendo a inquietação de BPM. Gostaria de submeter minha opinão à crítica dos colegas. Não fosse o seu ‘corpo’ (sentido do autor), os humanos não veriam os animais como tal. Não é de fato por sua ‘alma’ (sentido indígena) que os humanos os vêem como animais. Me parece por outro lado que é pelo ‘corpo’ (sentidos indígena e do autor) dos animais que estes são o que são para os humanos, e que é por sua alma que são humanos para si mesmos, e, coisa importante, podem vir a sê-lo também para os Yudjá. Uma das razões pelas quais foi possível ressaltar a presença da noção de ponto de vista está justamente no fato de que os conceitos de corpo e alma não se distribuem do mesmo modo quando se passa dos humanos aos animais: há uma dobra, uma torção, uma perspectiva, pois o que é corpo para um vai aparecer como alma para o outro (cf. T. S. Lima 1996). A perspectiva não poderia, portanto, estar nem no corpo nem na alma, e não poderia existir senão como determinação do corpo e da alma como fenômenos perspectivos. O corpo, pode-se dizer, foi o que o autor elegeu como perspectiva analítica. Dizer que ela está no corpo quer dizer que este altera a nossa compreensão dos sistemas indígenas. A proposição de EVC captou, acho, a impossibilidade de permanecer na alma para compreender a variação perspectiva, de partir do animismo para descrever o perspectivismo. Decidamente, estes não são rótulos alternativos para os mesmos sistemas. A troca de palavras é mudança da coisa, quer dizer, mudança de perspectiva.TSL
Considerações posteriores (BPM, 2/6/05)
  • - 1a. possibilidade: o mundo visto/visível é sempre o mesmo, mas "deslocado", em termos de "suporte", segundo a perspectiva; todos vêem as mesmas coisas, mas não nas mesmas coisas - o mundo de todos os sujeitos é povoado exatamente dos mesmos seres e coisas - humanos, antas, cauim, etc - mas não nos mesmos "suportes"; daí o sujeito se ver sempre como humano; por aqui chegamos à sua afirmação de que "humano" é, de fato, a forma da percepção de todo sujeito; os diversos mundos, neste caso, são perfeitamente comensuráveis na forma; as traduções, portanto, seriam diretas, sob a forma da correspondência (p.e. sangue = cauim); no mito: humanos eram todos, de modo que foi a perspectiva dos outros que se deslocou, a humana se manteve
  • - 2a. possibilidade: os mundos vistos/visíveis não são os mesmos, e a perspectiva desloca todas as formas; ou seja, cada sujeito vê um mundo diferente mesmo, só as categorias é que são as mesmas; o jaguar não se veria como humano, mas tampouco como nós vemos o jaguar e sua anta não seria como a nossa, e o sangue não é visto por ele como (sob a forma de) cauim, mas como algo que nem é sangue nem cauim na forma, mas corresponde ao cauim para os humanos, etc etc.; jaguaridade seria a percepção que o jaguar, e só ele, tem de si como sujeito, diferente, portanto, da humanidade, que é a nossa forma de percepção do sujeito; os mundos seriam, neste caso, incomensuráveis na forma e a tradução, indireta, sob a forma da correlação (sangue:jaguar::cauim:humano, mas sangue≠cauim e jaguar ≠humano); no mito: igualmente sujeitos, isto é, portadores da mesma perspectiva (de todas as perspectivas potenciais, melhor dizendo), eram todos, as perspectivas se separaram (à la Torre de Babel) ao se fixarem nos diferentes habitantes mortais do cosmo – indivisão/completude ou melhor, potencialidade plena, que permanece no plano dos não-mortais.
  • - Nota de TSL sobre a equação: sangue:jaguar::cauim:humano, mas sangue≠cauim e jaguar≠humano. O que é que a noção de ponto de vista informaria sobre essa homologia, senão que ela é única e exclusivamente humana? Nada sei quanto ao sangue cauim-de-jaguar, pois os Yudjá nunca equacionaram em minha presença cauim-de-gente a sangue para a onça, embora se jaguarizem bebendo cauim, e digam embriagar-se com o odor de sangue humano na hora da batalha. Mas outros cauins como a lama dos porcos e o lodo dos bagres, afirma-se, não embriagam seus respectivos donos apenas, mas também os Yudjá que os tomassem. O cauim-de-gente, tido como tal pelos animais, onças inclusive, também os embriagaria. O cauim-lodo não é o lodo, mas cauim com aspecto de lodo; tampouco a lama é o cauim dos porcos. (Dir-se-ia que, quando o cauim entra em cena, o dualismo das equações perspectivistas cede lugar a um triadismo.) Incomensurabilidade e comensurabilidade não são excludentes, e as traduções não vão sem autotransformações: o tradutor é ‘traduzido’ junto, e o traduzido é ‘tradutor’. Disso se pode chegar a uma terceira possibilidade:
  • -3a. possibilidade: a noção de ponto de vista (que é antes de tudo conhecimento humano) é etnograficamente extraída do fato de que o mundo visto/visível para os humanos não é sempre o mesmo. Essa alteração do mundo marca o ponto de vista humano como co-implicação das perspectivas, que assim se tornam parcialmente comensuráveis e parcialmente incomensuráveis. Sangue embriaga gente, cauim embriaga onça. A incomensurabilidade no aspecto visual (sangue ≠ cauim, gente ≠ onça) não exclui a comensurabilidade quanto ao processo corporal (sangue = cauim, gente = onça).TSL

Nota: as divagações expressas acima são inquietações; nem objeções nem propriamente inquietações pessoais; procurei levar adiante um raciocínio, for the sake of argument, cuja fragilidade as ponderações subseqüentes evidenciam: não há como entender cartesianamente uma filosofia que, justamente, não o é. É e não-é, concomitantemente, comensuravel e incomensuravelmente, de modo não excludente, eis a questão.BPM


Nota sobre mitos pano (Oscar Calavia)

Sobre o tema humanidade vs personitude (sujeitidade, etc.) remeto aos mitos, e algumas exegeses Pano, concretamente Yami, Yawa e Kaxi -nawa (cf. Calavia Sáez 2001, El rastro de los pecaríes). Aí se diz claramente:

1. As queixadas são humanas 2. As queixadas não são humanas

São humanas porque a sua comida, a sua bebida, as suas aldeias, o seu parentesco e os seus sentimentos são humanos. Para percebe-lo, basta ver direito, como faz o caçador do mito quando pingam nos seus olhos o remédio adequado. As queixadas são huni kuin. (Lagrou 1998;76)

Não são humanas porque decidiram adotar a forma de queixadas, fabricando para si um corpo de queixadas, comendo paxiubinha, fuçando na lama, migrando como queixadas, etc. Isso não implica que não sejam sujeitos, pelo contrário. Mas são só esses outros sujeitos que não se transformaram em queixadas os que dão lugar aos huni kuin, humanos-mesmo, que caçam e comem queixadas.

“Huni kuin” (que, de resto, é um conceito usado pelos Kaxi mas não, por exemplo, pelos Yaminawa) não corresponde a “humanidade” em geral. Mas o interessante é que, deixando de lado por enquanto se huni kuin denota humanidade ou personitude, uma proposição afirma e a outra nega esse mesmo termo. Afirma quando se trata de uma alteração do olhar, nega quando se trata de uma alteração do corpo (pele, roupa, etc.). Esses dois supostos, alteração do olhar e do corpo, são duas expressões do que estamos chamando perspectivismo, mas nunca aparecem simultaneamente. De fato, as duas alterações, sendo simultâneas, se neutralizariam mutuamente. Nos mitos pano aparece uma ou outra (no máximo, marcam episódios diferentes na mesma narração). A alteração-olhar, pelo menos nos mitos yaminawa, parece contar com uma diferença dada entre espécies; a alteração-corpo introduz diferenças construídas (que tendem a se estabilizar, à diferença das idas e voltas do olhar); a segunda confirma, mas também nega a primeira. Essa ambigüidade é, na minha opinião, constitutiva do que estamos descrevendo, não um ruído que poderia ser eliminado por uma melhor definição/tradução dos conceitos. OCS

De pleno acordo com OCS; como especulei mais acima, essa ambiguidade é um "problema (o problema) que os índios, justamente, acham interessante pôr e manter em certo suspense".--Eduardo 08:44, 21 Jun 2005 (UTC) Estou de acordo também. Aliás, o que há não é ambiguidade, mas perspectiva. O suspense remete ao já formulado por Riobaldo: viver é perigoso, e não é não.TSL


Referências para discussão (em aberto)
  • "In transforming animal flesh into vegetable [the Piaroa] are reclassifying animal food into a category which should be 'possible' to be eaten. The ambiguity nevertheless remains for, even worse, the animals live in primordial human form beneath the earth." (Overing 1985 [Mummy]: 169; grifo EVC).
  • (BPM 3/6/05) Pergunta: o que em piaroa se traduz aqui por "human" e "human form"? e nas demais afirmações de "humanidade primordial"? não se trata, evidentemente, de duvidar desta ou de nenhuma outra tradução; mas parece-me ser preciso passar por elas .
  • (EVC 4/6/05:) Sem dúvida; mas o mesmo se aplicará a "animal", "pessoa", "gente" etc. De qualquer modo, será que é uma questão de palavra, ou solúvel nestes 'termos' (i.e. pelos termos)? De qq modo, há discussões/elucidações sobre tais palavras/traduções em diversos lugares. De orelhada, lembraria: Taylor sobre wakan e aents jívaro; Fienup-Riordan sobre "his person" como a tradução literal das noção de 'alma' em Eskimo; Vilaça e wari'; TSL sobre os vocábulos Juruna. Transcrevo tb algumas fichas abaixo, já referidas alhures na O&D:
  • Alexiades, tese 1999 sobre os Ese Eja (Tacana), 179-80: ‘The oft heard statement that “all the animals are Ese Eja” [Note: ‘Todos los animales son Ese Eja’. This generalization is punctuated by some exceptions. The fish na’a-wewi… for example, …was created as the manioc of the edosikiana… Unlike animals however, many plants — specially trees — are not considered Ese Eja] … also implies that all the animals have eshawa, or rather, are physical, tangible manifestations of anthropomorphic eshawa, and hence share an essential aspect of being with humans. • Alexiades 1999: 180: ‘Indeed, the radical –eja, as in Ese Eja, literally means “person” or “spirit” (Chavarría 1996: 190), and it can be used almost synonymously with eshawa. Hence, hai eja, the spirit of the catfish hai, is in effect the same thing as the eshawa of hai.’ Discutir isso e Fienup Riordan, in fine deste capítulo: são pessoas ou ‘têm’ pessoas, os animais? Mesmo problema nos Caxi, os animais que ‘têm’ yuxin e os animais que ‘são’ yuxin (Lagrou 1998: 45). Toda a questão dos diferentes tipos de animais, i.e. das diferentes relações entre animal e espirito, como se pode ler p.ex. em Lagrou 43ff ou sobretudo em Crocker 1985.
  • Weiss (1972: 170) on the Campa of Peru: "And what is the nature of the universe in which the Campa find themselves? It is a world of semblances; for example, what to us is the solid earth is airy sky to the beings in-habiting the strata below us, and what to us is airy sky is solid ground to those who inhabit the strata above. It is a world of relative semblances, where different kinds of beings see the same things differently; thus humans eyes can normally see good spirits only in the form of lightning flashes or birds whereas they see themselves in their true human form, and similarly in the eyes of jaguars human beings look like peccaries to be hunted"(grifo EVC)
  • Vilaça (1997: 4) on the Wari’ of Rondônia (Brazil): ‘Humanity is defined by the possession of a spirit or soul. Animals endowed with spirit are considered as “people”, “human”. They have a human body that shamans can see; they live in houses, drink maize beer and eat their food roasted and boiled. All ‘human’ animals have culture, the same culture of the Wari’. That is why they hunt, kill enemies, use fire to prepare their food, cultivate maize etc. This, however, is the way they [the animals] see things. The Wari’ know the jaguar kills its prey with tooth and claw, and eats it raw. But for the jaguar, or rather, from the jaguar’s point of view (shared by shamans, but not by the rest of the Wari’), he kills its prey with arrows like the Wari’ do; he takes the prey home, gives it to his wife and tells her to cook it.’ (grifos EVC)--Eduardo 13:12, 4 Jun 2005 (UTC)

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