A Onça e a Diferença
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Texto em negrito, a colocação de armadilhas fotográficas. Através dessa última, as onças são identificadas pelos padrões das pintas, que produzem uma espécie de impressão digital de cada uma, o que permite identificá-las e contá-las. (Um método usado também com tigres na Índia). O uso de rádio-telemetria implica na captura dos animais, que é feita principalmente com o uso de cães. Esse é também a forma tradicional de caça na região, e os biólogos muitas vezes contratam caçadores profissionais para essas capturas, com cães experientes.


Na Fazenda Caiman, o projeto conta Onças, cães e projetos de pesquisa em fazendas do Pantanal


Uma história contada por um peão de gado pantaneiro:


O sujeito chamou um caçador para ir atrás da onça. Chegando no mato, ficou esperando enquanto os cachorros correram na batida da onça, e atrás deles o caçador. Mas a onça rodeou e voltou para trás de onde ele estava esperando, subindo numa árvore alta.Logo depois, o sujeito ouviu o barulho do caçador voltando com os cachorros, mas achou que fosse a onça e subiu também na árvore. Só que ela já estava lá em cima e ele não viu. Quando o caçador chegou, falou:
– Não precisa pegar ela sozinho não, deixa que eu atiro aqui de baixo.
Nisso, o cabra viu a onça em cima dele e despencou lá de cima, rolando no chão feito um quati. A cachorrada foi então para cima, achando que era um bicho, e acabou com ele.


A história tem alguns elementos interessantes – a esperteza da onça, a ambigüidade do caçador, o detalhe do quati – mas talvez o mais curioso seja o que é deixado no ar: quem seria o sujeito atacado pelos cães?




No começo de março, fiz uma viagem de duas semanas para o Pantanal do Mato Grosso do Sul, para conhecer dois projetos de pesquisa em Biologia que têm como principal objeto de estudo a onça-pintada. As duas fazendas que visitei ficam próximas à cidade de Miranda, e são exemplos de um modelo bastante difundido no Pantanal: terras muito extensas e com milhares de cabeças de gado, que buscam conjugar a pecuária tradicional ao turismo ecológico (um turismo muito caro por sinal, voltado principalmente para o público estrangeiro).


O projeto desenvolvido na primeira delas, a Fazenda San Francisco, é vinculado à instituição Pró-Carnívoros, uma O.N.G voltada para pesquisa de animais carnívoros brasileiros. O segundo projeto, na Fazenda Caiman, é realizado pelo Fundo de Conservação da Onça-Pintada (uma dissidência da Pró-Carnívoros), e mantido em parceria com a Conservation International. Um tema central em ambas as pesquisas é a relação entre esses animais e a criação de gado; uma relação historicamente conflituosa, que começou a se modificar a partir dos anos 70 com o desenvolvimento do turismo no Pantanal. Com a afirmação da imagem da região como “paraíso ecológico”, a onça – figura chave para o eco-turismo – passou a ser o produto principal da nova economia. Os projetos de pesquisa surgiram na última década, através de parcerias com as fazendas, inseridos numa dinâmica regional em que a visão tradicional e a ecológica se sobrepõe. Entre outras coisas, são projetos de conciliação, que procuram diagnosticar a causas e propor soluções para o extermínio dos felinos pelos fazendeiros. A caça desses animais é qualificada pelos biólogos como “retaliativa”; ou seja: é uma reação ao ataque desses animais ao gado. Assim, a questão básica colocada pelos biólogos, tendo em vista a preservação das onças, é: “como resolver o conflito?”


Existem duas propostas para isso. Um exemplo da primeira abordagem é o “Projeto Onça-Social”, desenvolvido pelos pesquisadores da Fazenda Caiman, que promove a interação entre pesquisadores e moradores locais e leva assistência médico-odontológica para moradores de diversas fazendas da região. Trata-se de um projeto de educação ambiental realizado duas vezes por ano, com a distribuição de livretos e cartilhas e a realização de entrevistas com as pessoas atendidas pelo projeto.


A segunda proposta de resolução é a intervenção direta no conflito visando minimizar as perdas dos fazendeiros, através basicamente de mudanças no manejo do gado. Outro exemplo disso é a compensação financeira, que funciona da seguinte forma: os pesquisadores identificam ataques de onça e arcam com o prejuízo do fazendeiro, pagando o preço médio de mercado do boi na região.


atualmente com um canil “com fins exclusivamente científicos” (como diz a apresentação do projeto), o que permite que a captura das onças seja feita sem a necessidade de recorrer aos caçadores. Nesta fazenda, por sinal, só existem cães de caça; os animais de estimação foram banidos a partir do momento que o local se tornou refúgio ecológico. Se o cão é bom caçador, ele fica; se não, é dado para alguém criar longe dali.


Quando as capturas são realizadas com sucesso, as onças são medidas, pesadas, são feito registros fotográficos de sua arcada dentária, além de coletas de sangue e sêmem. Por fim, coloca-se nelas uma coleira equipada com um transmissor de rádio, que possui uma freqüência específica. A partir daí, pode ser feito o monitoramento diário dos movimentos desses animais, e suas posições são registradas em GPS e marcadas em mapas localizados na base do projeto.


O que me pareceu interessante em relação aos projetos de pesquisa com onças, e que me levou até lá, foi justamente a presença humana na paisagem. Estudos com animais selvagens na natureza (como dizem os biólogos) costumam ser feitos em parques nacionais ou reservas biológicas; isto é, lugares onde esses animais estão idealmente isolados do contato humano. Os projetos do Pantanal, por sua vez, ao problematizarem a relação entre os diversos agentes que constituem o mundo da onça, trazem para dentro da pesquisa diversos atores humanos e humanizados: fazendeiros, caçadores, peões, gado, cães, turistas...


FAZENDA CAIMAN

A Fazenda Caiman (a segunda em que estive) é uma referência em termos de eco-turismo em toda a região. No dia seguinte à minha chegada, conheci o administrador da fazenda, César, que não pareceu gostar muito quando me apresentei. Ele disse: “Antropólogo? Têm muito antropólogo aí para defender os índios, mas nenhum para defender o fazendeiro”. Contou então que o avô veio do Rio Grande do Sul para a região, para trabalhar com gado, e que o pai dele trabalhou na então Miranda Estância, a fazenda que viria a ser a Caiman: “Naquele tempo o gado era criado sem cerca, tudo no laço e no berrante”.


Quando perguntei sobre as onças, contou que as mães costumam assustar os filhos no Pantanal, dizendo: “Não vai sozinho tomar banho lá no ribeirão que lá tem onça braba e te come”. Falou ainda que “antigamente tinha muita onça”, e que a fazenda tinha um funcionário “só para matar onça”. Quando achavam “batida” (rastro) ou algum animal morto – afirmou – chamavam esse caçador para ir atrás dela com os cachorros, “se não, não tinha como criar gado”. Contou ainda que “naquele tempo, um bom cachorro onceiro valia vinte cabeças de gado, quando era cachorro bom mesmo, mestre”.


César contou essas coisas quando estávamos a caminho do canil, onde Cíntia e Mariana, duas veterinárias que estavam coordenando a pesquisa na fazenda, iam fazer os preparativos para uma tentativa de captura que ocorreria na manhã seguinte. Me mostraram os cães, alguns importados dos EUA, de raças de caça: foxhounds, bloodhounds, coonhounds; mas o único cão mestre do canil era um pequeno vira-lata, importado de uma fazenda vizinha, chamado de mestrinho. O que faz o cão ser considerado mestre, conforme me explicaram, é o fato de que ele só segue o rastro da onça, e não vai atrás de nenhum outro animal; além disso, ele tem a reputação de saber que a onça pode subir nas árvores, ficando sempre atento a isso. Alguns nomes dos cães do projeto: maluca, zagaia, berrante, bugio. Esses dois últimos ligados ao uivo característicos dessas raças de caça (hounds). O grito do bugio é uma referência para os pantaneiros, como me explicou um dia um morador antigo da fazenda: “A gente conhece bugio pelo vento. Se ele canta pra lá é vento sul, se é pro outro lado, é vento norte”. Assim se pode saber quando e de onde vem a chuva. O canil ficava num lugar chamado Retiro Novo, a 15 km de distância da sede da fazenda. Passei alguns dias lá. É um dos quatro retiros da fazenda, e o maior deles. Uma área dividida em “invernadas” (pastos), administrada a partir de um cercado central, onde se trabalha com os animais de montaria e com o gado. No “mangueirão”, como é chamado esse cercado, os animais são contados, vacinados, marcados, castrados; também são separados os que vão ser transportados para as cidades de Miranda e Aquidauana, para o abate. Além da carne, o boi fornece outras matérias-primas. O couro é o material usado na fabricação de muitos equipamentos dos vaqueiros: a sela, o coldre do revólver, o embornal onde carregam alimento, o laço, entre outros. O chifre é usado para se fazer a guampa, o recipiente no qual se toma o tereré, o mate gelado típico da região.


Os peões são divididos em funções; na parte de baixo da hierarquia fica o praieiro, que cuida das casas e do material de montaria; depois, há o tropeiro, peão mais novo que sai cedo para reunir a tropa (“o primeiro a acordar e o último a dormir”, me disseram). Os próximos nessa escala são os campeiros, que saem diariamente para colocar sal nos coxos, e que vão pegar o gado brabo disperso no campo. Quem manda no Retiro é o capataz; quando ele não está, o peão campeiro mais velho, o segundo capataz, fica em seu lugar. No total, vivem no Retiro Novo 18 pessoas. Os peões casados têm suas próprias casas, onde moram com suas famílias, enquanto os solteiros moram num grande galpão, onde fica também uma das duas sedes do projeto de pesquisa. Ao lado dessa casa está o canil, com os cães de caça do projeto.


Duas vezes por ano, os peões reúnem o gado. Primeiro, é trazido o gado manso, chamado de “sinuelo”. Mais tarde, vão atrás do gado “bagual”, que está disperso pelos campos. São animais considerados selvagens, perigosos, que às vezes nunca viram um homem. Para amansar esses bois, amarra-se cada um deles a um animal manso, usando uma corda presa em uma espécie de tesoura grande e com a ponta chata, que fica presa nas narinas do animal bagual. Isso aperta o focinho do bicho, que é obrigado a seguir o boi manso para onde quer que vá. A dualidade entre o animal doméstico e selvagem é, portanto, interna à relação com o gado, que pode ser sinuelo ou bagual. São categorias fundamentais para os peões, que podem se referir também a uma onça como “mansa” ou “braba”.


Um outro animal interessante no bestiário pantaneiro é o porco-monteiro. Uma espécie doméstica, de origem européia, que se adaptou ao ambiente do pantanal e voltou à vida selvagem. Sua situação é interessante para se colocar em questão a relação entre doméstico e selvagem, ou exótico e nativo. (Para os pesquisadores com quem conversei, soava meio absurda a idéia de se estudar esse híbrido: é um animal caracterizado como exótico ou invasor, que compete com as espécies locais, o queixada e o cateto).


O porco-monteiro ocupa um lugar próprio na cultura local, já que pode ser caçado e a carne dele é bem apreciada. Quando os peões encontram esse bicho ainda jovem, eles o laçam, amarram e capam, cortando um pedaço da orelha ou do rabo para marcar o animal. Fazem isso porque dizem que se o bicho não for capado a carne fica com o gosto ruim; é a mesma lógica que se usa para o gado. Chamam o animal inteiro de “guaiaco”, e capturam somente o “capado”, quando já está bem gordo para ser comido. A caça ao porco-monteiro é a única permitida na fazenda, já que os animais nativos são protegidos. (Toda a área é um refúgio ecológico: um dos moradores do Retiro Novo, por exemplo, havia sido mandado embora por ter atirado num queixada, mas foi recontratado depois).


Os peões participam também das capturas de onças, que são acontecimentos especialmente aguardados. Nessas capturas, os pesquisadores saem bem cedo numa caminhonete, com os cães na caçamba, e vão até onde um dos peões localizou o rastro fresco de uma onça. Soltam então o cão mestre, e esperam ele “firmar na batida” (como dizem) para soltar os outros cães.


Acompanhei duas tentativas de captura no período em que estive na fazenda, sendo que em nenhuma delas conseguiram pegar a onça. Como não pude acompanhar os pesquisadores, fiquei recebendo notícias pelo rádio (o modo de comunicação principal na fazenda). No final da manhã, veio a notícia de que um dos cães estava muito ferido e que haviam desistido da caçada. Algum tempo depois, uma caminhonete passou rapidamente pela base do projeto, levando o cão Bugio para o veterinário em Aquidauana, para uma cirurgia de emergência.


Mais tarde, fomos levar os outros cães, fatigados, de volta para o canil. Negão, o guia de campo do projeto, estava bastante preocupado. Falava para os outros cães que tinham ficado:“Onça pegou bugio”. Mais tarde, já sabendo que o cão estava fora de perigo, contou com mais detalhes como tinha sido a caçada. Disse que onça tinha ficado no chão ao ser “acuada”, e que era muito braba. Como o mato era fechado, eles não tinham conseguido acertar o tiro de tranqüilizante, que tem que ser dado bem de perto. Depois de morder o cachorro, e ferir alguns outros, ele explicou a onça perdeu interesse neles, e que ficava olhando fixamente para os caçadores. Como ele era o que estava mais perto, explicou, fez uma “forquilha” com um galho de árvore, para se defender; segundo ele, isso foi o que o salvou, já que a onça avançou direto na sua direção. Negão contava isso na roda de tereré (onde os peões se reúnem), e seu Zé Carlos explicou que é assim que se caçava com a zagaia: “tem que esperar a onça avançar, e firmar a zagaia no chão; quando a onça fica em pé para pular você coloca a zagaia na direção certa e ela mesma se mata espetada na lança”.


Perguntei ao Seu Zé Carlos um dia se havia outros nomes para a onça, e ele me explicou que eles falam mesmo onça-pintada, ou só pintada, e brincam às vezes chamando de “mão-fofa”, mas distinguiu dois tipos: a “malha-larga” e a “malha-fina”, de acordo com as manchas dos animais. Chamou a onça-parda de “onça mansa, que só pega garrote, potro, carneiro, bicho macio”. Falou também da “lombo-preto”, mais escura e maior do que a parda. Outro peão antigo da fazenda diferenciava a parda de outros dois tipos de onça: a “saçurana” e a “da pata rajada”; essas últimas maiores, que “pulam em bicho grande como a pintada”. Na Fazenda San Francisco, tinha conversado também com um peão que havia sido surpreendido por uma onça-pintada quando passava de cavalo com o filho. Segundo ele, a onça estava de tocaia para pegar os cavalos, mas quando viu os dois homens montados, deu um pulo para trás “igual um gato”, e voltou para o mato devagar. “Ela não tem medo de gente” – ele disse. Na mesma conversa, chamou a onça-parda de covarde, e contou uma história em que as vacas reagiram e mataram uma delas.


Djalma, o praieiro do Retiro Novo, contou ainda a história de uma parda que morava na região e tinha andado “comendo potrinho novo”. Segundo ele, outros dois peões tinham ido atrás e laçado a onça no campo para “dar um cacete nela”. Mais tarde, quando encontrei o peão Guaraná, que era quem tinha laçado a onça na história, perguntei sobre o caso. Ele falou que tinha tentado, mas que não tinha conseguido pegar o bicho porque estava com um burro muito lento, mas que “num cavalo bom, no limpo”, dava para laçar uma onça-parda sim. Mais tarde, Djalma me disse que ele não tinha contado a verdade porque achava que eu fosse biólogo.


De certa forma, os pesquisadores ocuparam na fazenda o lugar antes ocupado pelo caçador de onças, e as relações que os peões estabelecem com eles de fato são parecidas com as que tinham antes com caçador: entram em contato quando acham rastros ou animais abatidos, acompanham e participam das caçadas... Os peões se referem aos pesquisadores como “onceiros”, ou como quem “mexe com onça”, assim como eles mesmos “mexem com o gado”.



SAN FRANCISCO

As atividades atuais do projeto na fazenda San Francisco são desdobramentos de uma pesquisa de doutorado em biologia sobre a relação entre a onça-pintada, a onça-parda e a criação de gado na fazenda e na região em torno dela. Entre 2003 e 2004, foram colocadas coleiras com rádio transmissor em doze onças-pintadas e duas onças-pardas, capturadas principalmente em caçadas com cães. Para essas capturas, o pesquisador contratou caçadores profissionais.


Essa relação pesquisador-caçador era um ponto-chave para a minha própria pesquisa, e tive várias conversas sobre isso com Henrique, o biólogo que está coordenando atualmente o projeto. De acordo com ele, ainda “tem muita caça na região, e as fazendas onde não tem caça são a exceção”. O pesquisador me explicou que uma das principais dificuldades para a conservação das onças é a ausência de uma atuação efetiva do poder público em relação à caça. A outra é a vontade dos fazendeiros, já que a fazenda pantaneira é como um estado absolutista: quem manda é o dono; se ele determina que é proibida a caça, os peões daquela fazenda param de caçar.


Na pousada da fazenda, há uma sala com muitas fotografias antigas penduradas na parede, com diversas imagens de caçadas. Sobre elas, uma zagaia (a lança usada na caça da onça). A maioria dessas fotos mostra um caçador dos anos 30 e 40, chamado Sasha Simmel, uma espécie de Jim das Selvas local, que escreveu alguns livros contando suas aventuras. Nessas narrativas, o caçador constrói um mito em torno de sua habilidade com a zagaia, que teria aprendido a manejar com um índio guató da região. Esse caçador ficou famoso enfrentando onças na frente das câmeras, em um cercado construído na antiga Miranda Estância, hoje Fazenda Caiman. Independente da veracidade dos relatos sobre ele, é uma figura emblemática da caçada de aventura praticada na época, a qual se contrapõe a imagem utilitarista da eliminação dos animais nocivos à criação de gado.

Nessas fotografias antigas, a imagem mais comum é a de caçadores armados ajoelhados em torno da onça abatida. Não pude deixar de observar a semelhança dessas imagens com as fotografias atuais feitas nas caçadas dos pesquisadores, em que eles se reúnem em torno da onça anestesiada. Comentei isso com o biólogo do projeto, que não pareceu gostar muito da idéia, e procurou me mostrar como nessas últimas fotos, há um cuidado com a posição assumida em relação ao animal, para que não pareça um troféu de caça. Wendel, o guia de campo do projeto, foi caçador de onças até alguns anos atrás, em outra fazenda. Tinha seus próprios cães, e contou que era chamado sempre que alguém achava o rastro de alguma onça. Começou a caçar com 15 anos, e até chegar aos 20 já tinha matado cerca de cinqüenta onças, pelos seus cálculos. Nesse período em que trabalhou como onceiro na outra fazenda, fazia também o que chamou de “safari”, levando gringos para atirarem nas onças.


Ao vir trabalhar no projeto, ele continua usando sua experiência de caçador, agora para proteger as onças. Uma de suas funções é cuidar do canil da fazenda, com cães ainda pouco experientes. Para treinar os cães, Wendel me contou que o método tradicional pantaneiro é se pegar um gato, passar banha de onça nele e deixar amarrado perto dos cães novos. Mais tarde, esse gato é solto no campo, e os cães vão atrás dele, seguindo o cheiro da onça. Outro modo de treinamento é deixar um cão mestre no meio da matilha para “eles irem se enturmando”.


O canil do projeto é composto basicamente de uma raça conhecida na região como “americano” (foxhound americano). Segundo Wendel, são cães que não ficam obedientes de jeito nenhum, por mais que o dono queira ou bata neles. Para levá-los para passear, ele se utiliza uma coleira dupla, e um cão fica atrelado ao outro, o que os impede de correr atrás do primeiro animal que passar. (Isso também é usado com cavalos e burros fujões).


Os casos de ataques de onça ao homem são muito raros na região, e mesmo encontros com onças são raros, a não ser em situações de caça. Quem efetivamente encontra com onças é quem vai atrás delas. Henrique, biólogo do projeto, me disse um dia: “A maior parte do tempo a gente trabalha com rastros, vestígios, sinais, parece que estamos perseguindo um fantasma”.


A relação dos biólogos com a onça é indicial; ela aparece em sinais na paisagem: pegadas, carcaças de animais abatidos (a revoada de urubus é um desses sinais, assim como o cheiro de carniça), pêlos, fezes, ou então nas imagens fora de foco capturadas pelas armadilhas fotográficas. Esses indícios são os elementos coletados pelos biólogos em sua pesquisa.


A sede do projeto é uma casa da fazenda, que conta com um auditório onde os biólogos fazem apresentações para os turistas. Em uma pequena sala lateral, o material coletado no campo é catalogado, numerado e arquivado. Amostras de fezes de onças, por exemplo, colocadas em sacos plásticos com data, hora e local, passam por diversos estágios de tratamento, e o que sobra no final são pêlos de animais, que serão identificados posteriormente com o uso do microscópio. Sobre uma grande mesa, no centro dessa sala, são guardadas várias ossadas, a maioria de animais mortos pelas onças: veados, catetos, queixadas, capivaras, jacarés, vacas e outros. Essas ossadas, além das informações sobre o quando e onde, falam também do como: nelas, o biólogo identifica as marcas da mordida da onça e o modo como o animal foi morto. Faz anotações detalhadas: o tipo de terreno onde esses animais foram encontrados, se foram arrastados do local onde foram abatidos, a que distância estavam da estrada mais próxima... Assim, são produzidas reconstituições detetivescas da morte dos animais.


Um crânio de onça que estava nessa mesa tinha um significado especial para o pesquisador. Era de uma onça que apareceu morta numa fazenda vizinha com um tiro. Henrique me mostrou o buraco feito pelo tiro e explicou que o animal estava com a coleira de rádio, o que permitiu que fosse localizado, mas o que significava também uma afronta aos pesquisadores. Era o maior animal que pegaram (com 114 kg), chamado de Fernandão, em homenagem ao biólogo que o capturou, no dia do seu aniversário.


Quando capturadas, as onças recebem nomes, dado por alguém que participa da pesquisa; uma delas recebeu o nome da mãe do biólogo, Elisa; outra foi chamada de Clara, pois foi capturada no dia de Santa Clara. Na fazenda, não só os pesquisadores usam esses nomes, mas também os guias turísticos (nas focagens e safáris fotográficos) e os peões. Um processo de subjetivação paralelo aos processos objetivação e quantificação a que são submetidos na pesquisa científica.


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